quarta-feira, 25 de julho de 2007

O amor Venceu

Fazia horas que ela estava, de pé, segurando aquela bandeira de um empreendimento imobiliário num bairro nobre da cidade. Nobre é modo de dizer, pois a estratégia de fazer o bairro virar chique, de pessoas sofisticadas, era uma farsa das próprias empresas de construção civil. O bairro tinha espetinhos e botecos espalhados pelas esquinas, tinha cortiços e casas de prostituição.
Segurava a bandeira com uma força mínima, inercial, e com suas outras três colegas, que escutavam música no fone de ouvido. Duas ficavam numa rua, duas noutra. Sempre vemos algo como isso na rua, é uma tentativa de divulgação um pouco medieval, porque os fidalgos de outrora também seguravam suas bandeiras em frente a seus castelos. Pode ser até que a divisão de marketing tenha tido o objetivo de provocar essa imagem, meio de fidalguia. Não há como negar também que aos preços que as unidades são vendidas, fidalguia não é senão pré-requisito entre os consumidores.
Toda a cena que se figurava ali, naquele local, era irritante, vazia como tem sido sempre esta vida em que cada quarteirão é um pedaço do bairro, um outdoor e um evento artificial e forçado, ao mesmo tempo. Havia dias em que ninguém ia ver o apartamento decorado, havia dias em que o corretor não vinha. Aquele quarteirão, em que as bandeiras tremulavam, era um templo dedicado unicamente à inutilidade, quando não era dedicado ao comércio, logicamente.
E não ela, nem ninguém, mas algo, olhava aquela cena. Alguma nuvem, certa quantidade de ar, que chamariam provavelmente de Deus, Deuses, Acaso, Fortuna. Aquele algo que olhava aquela cena como quem passava apenas o tempo, entediado, e desejava, ou melhor, sabia, que aquilo não era só “aquilo”.
Exatamente. Não era só aquilo, não podia ser. Todo aquele espaço, todas aquelas pessoas com uma ou outra esperança, um sonho aqui ou ali, simplesmente não era possível que fosse só aquilo. Ficava cada vez mais inquieto, com o passar dos minutos, com o soprar dos ventos. Um pouco em vão, se poderia dizer. Ao que tudo indicava, era aquilo mesmo, não importa o quanto se esperasse que fosse outra coisa.
Foi aí que, por teimosia de quem olhava, ou por milagre, não se sabe dizer, um homem que passava pela rua, ao cruzar toda aquela artificialidade, nota que nas mãos daquela moça, em silêncio, havia um livro cujo título era “o amor venceu”. Seu pensamento pára por um instante, e aquela frase lhe entra como uma injeção na farmácia. De repente aquela frase lhe pesa em todos os acontecimentos da sua vida, desde que nasceu, até pouco tempo antes de ter saído de casa, quando sentava no sofá e comia salgadinhos. Repetia em sua cabeça aquela frase “O amor venceu” como um mote, um grito de torcida. Como se uma torcida inteira gritasse roucamente aquele título ao seu ouvido.
Mas o que houve para o amor ter vencido? Não se sabe, venceu. E no meio a toda aquela insensatez, e todas as outras coisas que acontecem na cidade, e em meio a todas as personalidades gelatinosas das pessoas, que não mais se importam com um pingo de vitória do amor, ele, que andava ainda extasiado, entendeu que contra tudo e contra todos, o amor tinha vencido, e agora era irreversível. Passou o resto do dia contente.
Aquele acúmulo de ar, que assistia a tudo, não pêde deixar de se sentir satisfeito. Realmente não era só aquilo, jamais poderia ter sido. De repente, sentiu-se tão inflado , quanto o homem passante, ao constatar que naquele quarteirão havia um mundo em que era nada, e um mundo em que era tudo, e aquele quarteirão era os dois. Ele sorriu e foi preparar uma chuva merecida para o fim da tarde, com direito a trovoadas e tudo.
A moça que segurava o livro olhava para aquela capa com desprezo. Se tivesse dinheiro, teria comprado um livro de sua escolha. Pegara emprestado de um amigo para passar o tempo. Horas antes, no começo da jornada de trabalho, uma de suas amigas perguntou:
- E este livro aí que você está segurando, é bom?
Ela respondeu um pouco decepcionada:
- Não, parei no terceiro capítulo.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Românticos e Realistas

Sempre ouvimos de alguém numa discussão: "ah, estou sendo realista", como se isso desse ao sujeito alguma espécie de superioridade moral. O conhecimento da realidade, seja por pensamento ou por vivência empírica, só pode ser a ilusão dos mais tolos, já que, ao que tudo indica, não é possível sentir, ou conhecer, uma realidade objetiva, algo que exista independentemente do olhar humano, e está ali, diante de nosso nariz.

O humano tem a danação eterna de nunca poder entrar em contato direto com a realidade, isso se ela existir. Ele pode apenas apreendê-la, no entanto, que parece-me ser suficiente. Alguns poucos ainda, além de apreender a realidade, conseguem criá-la. E esses são os que sonham.

Fernando Pessoa, diz: "Os realistas realizam pequenas coisas, os românticos, grandes. Um homem deve ser realista para ser gerente de uma fábrica de tachas. Para gerir o mundo deve ser romântico." "É preciso um realista para descobrir a realidade" (o que na minha visão não é possível, ou só é possível se for para gerir uma fábrica de tachas);"é preciso um romântico para criá-la."