terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Menino do Engenho

Das reminiscências da minha infância, a que tenho com mais clareza é a de minha mãe pedindo para eu trazer tudo o que é coisa para ela. De copo d'agua a pão na padaria da rua Piracuama, de produtos de limpeza a recados da minha prima Lili.
Aquilo me deixava encucado. Por que que ela não vai lá buscar? E curioso é que após eu ter crescido alguns anos, e virado um projeto mais ou menos acabado de rapaz, os pedidos foram diminuindo gradualmente, e nunca entendi por que também. Hoje entendo, é porque eu era um menino, e enquanto se é menino, é isso que se tem que fazer.
A tradição tem origem provavelmente no período colonial, no ciclo da cana de açucar. O engenho era uma estrutura social quase completa, economicamente, culturalmente falando. Num engenho tinha tudo. Mas nem tudo era perto. A capela ficava perto da casa grande, mas e se eu quisesse avisar o escravo Cosme lá na casa de purgar que a mulher dele o estava procurando? Não dava para ter empregados, porque num engenho não há empregados. Ou você trabalha num eito, temporariamente por um pequeno salário, ou é escravo. Quem não faz um dos dois ou é branco ou é menino. E como os brancos ficavam encarregados do ócio e da administração do engenho, os meninos é que faziam esses serviços marginais que literalmente consistiam em buscar e trazer coisas. O menino não é um escravo, o menino é um menino.
O menino é um agregado, pode ser um filho de escravo que quiseram que ficasse na fazenda, pode ser um filho ilegítimo do senhor de engenho com uma escrava.
Na Bahia, dado o hábito brasileiro das famílias não serem propriamente de sangue, mas de convívio, todos tem pelo menos um menino. Fica então o Jorge Amado sentado numa rede, vestindo uma camisa branca de renda, com uma calça e uma sandália de couro brancas, esquecido da vida, tranquilo. Quando quer alguma coisa, ele grita: "Ô menino, vem me buscar um suco e aproveita e diz pro velho José Paulino que o vigário quer todo mundo na procissão de amanhã!". E o menino vai.
Jorge Amado não explora ninguém, afinal, ele também já foi menino de alguém. É uma fase da vida. Nessa fase buscamos e trazemos coisas para os outros, é normal, e não é para se questionar. Na nossa ordem social o menino ocupa uma função social, enquanto nas outras sociedades ele fica brincando só. É cansativo, mas se temos um menino a disposição, porque não usá-los?
Na sociedade colonial, os meninos tinham sua primeira experiência sexual muito cedo, com uns doze anos. Vale perguntar se depois da primeira vez eles deixavam oficialmente de ser meninos. Isso eventualmente explicaria a pressa.
[Aos auntênticos brasileiros é válido se ter nostalgia da época colonial, só não podemos esquecer que tudo isso se misturava com a vergonha da escravidão, que nossa bandeira manchou-se de sangue por dois séculos.]

Um comentário:

A Esquesita disse...

É a segunda vez que leio algo do gênero vindo de você. A primeira foi em uma comunidade do João. Fui ao Orkut e procurei para colocar aqui. Era sobre o fato do seu ex-professor Naddeo ter sido demitido e a menina lá da comunidade falou algo sobre 'nunca ter dado liberdade para ele fazer piadinhas ou algo do tipo' aí vc deu uma resposta mais ou menos parecida com esse post (ou não, sei lá...):
"como nunca deu liberdade? quando vc entra numa sala de aula vc dá liberdade para o professor ensinar e fazer a piada que ele quiser, do contrário ele não poderia interagir com os alunos. Como se nós tivéssemos alguma liberdade para dar.

A liberdade que ele têm e vcs não têm é a de falar em tom de autoridade, tendo mais experiencia de vida que vcs. é algo que o aluno tem que se conformar se quiser acumular conhecimento.

aí quando vc tiver conhecimento, terá autonomia, liberdade. aí vc decide o que fazer com ela.
"

Eu a achei bem realista, mesmo que a principio, senti uma meia revolta quando li que deveria me conformar... Mas depois percebi que é realmente isso que acontece... Achei bem interessante esse "resgate histórico" de um lado que pouco se dá importância e atenção.

Abraços, Anna.